segunda-feira, 21 de agosto de 2017

TOP DEZ longas de animação (que acabaram virando ONZE)


Na edição do Anima Mundi 2017 em São Paulo, fui apresentado a um dos artistas que mais admiro, Michael Dudok de Wit, o criador do longa animado A Tartaruga Vermelha.
A oportunidade foi fruto do trabalho da equipe do festival, encabeçada pelos seus quatro diretores, Léa Zagury, Marcos Magalhães, Cesar Coelho e Aída Queiroz. Há 25 anos que eles tem criado milhares de momentos legais como esse.

Muchísimas gracias, Anima Mundi.

Trocando figurinhas com Dudok, debaixo da tela prateada
Esse encontro me motivou a postar aqui a minha lista dos dez longa metragens de animação que mais gostei até hoje, que mais me impactaram. Fazer um longa de animação decente é uma coisa muito complicada. Bem mais difícil do que produzir um curta de animação ou um longa live action. Porque é muito fácil perder o foco, se atrapalhar com o ritmo e perder a noção do todo. Acertar um longa exige acertar tantas variantes ao mesmo tempo, trabalhando durante um período de tempo tão longo, que é quase mais uma questão de sorte, do que conhecimento. Quase, mas não. Por detrás de cada um destes longas que coloquei na minha lista tem raros artistas extremamente dedicados, inteligentes e profundos.

E você? Tem uma lista também? Tem algum filme que não poderia ficar de fora? Saia das sombras! Use o espaço de comentários, logo abaixo, e manifeste-se.

Coloquei na ordem cronológica em que foram lançados. Não acho que nenhum deles é melhor do que o outro. Fiz um esforço danado pra ficar em apenas 10. Mas no final, tive de me render a que não dava pra deixar um décimo-primeiro de fora. Confira:


1- Dumbo, 1941, produzido por Walt Disney, supervisão de direção por Ben Sharpsteen

O próprio Walt Disney, após produzir e dirigir de perto seus três primeiros longas, um mais ambicioso do que o outro, ficou aturdido com o fracasso de crítica e bilheteria do terceiro filme, Fantasia. Assim que o quarto longa da produtora, Dumbo, era um filme muito mais simples, com duração e verba menores. Mas com uma equipe afiada e super bem preparada. Disney encarregou Sharpsteen de dirigi-lo, com a colaboração de Norman Ferguson, Wilfred Jackson, Jack Kinney, Bill Roberts e John Elliotte, como diretores de sequência. Além disso a contribuição principal para o sucesso da história foi da dupla Joe Grant e Dick Huemer, que adaptaram para as telas o livro infantil de Helen Aberson, ilustrado por Harold Pearl. O story board foi dirigido por Otto Englander, com as participações de Bill Peet, Aurelius Bataglia, Joe Rinaldi, Vernon Stallings e Webb Smith. Ou seja, uma ENORME equipe trabalhou junta para imaginar e dirigir o filme, uma estrutura de direção quase coletiva.

Algumas das razões pelas quais coloco este filme na minha lista:

- É uma história bem bolada, com uma mensagem muito legal para as crianças. E para todo o público.
- Um elefante-bebê que voa cujo melhor amigo é um camundongo: Essa premissa é genial.

- Os personagens são simples mas muito bem construídos. E Dumbo, mudo, se expressa maravilhosamente através de ações. Ao contrário da maioria das animações produzidas atualmente pela Disney, Dreamworks, Pixar, Laika, Sony e Blue Sky, com esses personagens chatos que não param um segundo de falar.
- Até onde sei é a primeira vez que se usa, em um longa, aquele que virou o maior clichê da animação: A separação dos pais (no caso, só da mãe). E fizeram isso de uma maneira inteligente, intrigante e que se resolve muito bem no final, para alívio psicológico das crianças: - O que é fundamental, se você respeita o público, quando se propõe a incentivar que seu filme seja visto por toda a família.
- Animações insuperáveis. Destaque para a sequência dos Corvos (que acabou virando polêmica, porque alguns extremistas acharam que é racista), e para o sonho etílico de Dumbo e seu amigo, o camundongo Timothy. Hoje, com a ditadura do politicamente correto, nenhuma dessas duas sequências seria produzida novamente. E destaque, principalmente, para uma das melhores animações da história do cinema, o encontro de Dumbo com a Mãe, presa. Obra do genial Bill Tytla, um dos mais incríveis animadores de todos os tempos.



2- Bambi, 1942, produzido por Walt Disney, supervisão de direção por David Hand

Assim como em Dumbo, Walt Disney deixou a equipe mais livre para dirigir o filme. A direção foi supervisionada por David Hand, com os diretores de sequência James Algar, Sam Armstrong, Graham Heid, Bill Roberts, Paul Satterfield e Norman Wright. A história é baseada em uma novela do escritor austríaco Felix Salten. Foi adaptada para as telas por Larry Morey, direção de story board de Perce Pearce, com a colaboração de Vernon Stallings, Mel Shaw, Carl Fallberg, Chuck Couch e Ralph Wright. Mais uma vez demonstrando que, ao contrário da figura do diretor gênio solitário, o que pode funcionar melhor em longas de animação é o trabalho conjunto, supervisionado por um diretor, mas não um tirano.
Eu costumo dizer que Bambi está para a animação, assim como Rocco e Seus Irmãos, de Visconti, está para o cinema: - Um filme para assistir de joelhos.
Por outro lado, um dos exemplos mais gritantes da decadência dos estúdios Disney é a sequência de Bambi, Bambi II, produzida em 2006. A Disney, de um estúdio de artistas, virou, do final do século XX e até hoje, uma salsicharia de consumismo comandada por advogados e executivos gananciosos. Bambi II é um filme ruim, sem imaginação e que só serviu para demonstrar que os tempos são outros: o único desafio da mega-empresa é fazer seus executivos bilionários ganharem mais dinheiro.

Algumas das razões pelas quais coloco o primeiro (e deveria ser único) Bambi na minha lista:

- Foi a primeira vez em um longa metragem de animação que estudou-se profundamente o movimento dos animais, para criar cenas que não eram meras cópias do movimento, mas interpretações estilizadas. Um dos melhores exemplos disso é a sequência de Bambi aprendendo a andar no gelo, com a engraçadíssima colaboração do coelho Tambor. Originalidade, tridimensionalidade, humor, precisão, leveza. A lista de adjetivos para este trabalho do artista Frank Thomas é infindável. Consta que a sequência ia ser cortada, por causa da complexidade, e que Thomas teria trabalhado nela nos horários de folga, para convencer os produtores a mantê-la no filme. Isso é amar o que se faz.
- A direção dramática, que elegante e precisamente constrói a morte da mãe de Bambi, através de sinais sutis e ausências. Assim como a própria floresta, o que não se vê, o que está escondido, é que constrói a experiência do ambiente, da vida.
- Um filme visualmente leve, transparente, quase que flutua. Tudo é delicado: animação, visual, música. Muitos artistas contribuíram para isso, mas não se pode deixar de destacar o chinês Tyrus Wong. Seus estudos conceituais, a pastel e crayon, foram um dos principais pilares para o visual espiritual de toda a obra.
- Uma mensagem ecológica impactante e inovadora, ainda mais considerando o ano em que foi lançado. 
- O filme, e isso é mérito principalmente do livro que o originou, é uma experiência metafísica. Através de animais selvagens se desenrola a metáfora da vida e da conquista interior da alma. O homem é o irracional, que não tem consciência de nada disso e quer apenas possuir, através da destruição.


3- Planeta Selvagem (La Planète sauvage), 1973, dirigido por René Laloux, adaptação de Roland Topor de novela de Stefan Wul (Oms em série)

Eu queria que minha lista tivesse apenas dez filmes. Mas depois de quebrar a cabeça um tempo, a lista estava com onze. Pra ficar em dez, resolvi tirar justamente este filme,  Planeta Selvagem. E publiquei no Facebook, só a lista de títulos, sem todos estas explicações deste post. Marcos Magalhães do Anima Mundi logo veio perguntar: - E o Planeta Selvagem? 
É... Melhor fazer uma lista de 10 com 11, do que excluir esta obra seminal de Laloux e Topor. 
Seminal é um bom adjetivo para este filme que, quando foi lançado, abriu os olhos e as cabeças de muitos artistas da animação. O Submarino Amarelo, lançado cinco anos antes, já tinha quebrado alguns paradigmas. Mas não tinha a coerência e precisão narrativa e estética do Planeta Selvagem (também conhecido como Planeta Fantástico)
O filme foi animado nos estúdios em Praga de outro gigante da animação, Jiří Trnka. Os desenhos, que mantém fielmente o estilo gráfico de Roland Topor, foram feitos em papel e recortados manualmente, para serem sobrepostos aos cenários.

Algumas das razões pelas quais coloco este filme na minha lista:

- Apesar da simplicidade da animação, o filme é exuberante e envolvente. A mesma coisa se dá com os cenários e mesmo com os grafismos. Existe uma simplicidade, e às vezes até um certo vazio na cena. Mas toda essa aparente aridez torna-se um elemento da narrativa, integrando-se à obra.
- O estilo visual, que até então via-se apenas em curtas-metragens autorais, mudou a crença de que animação desenhada só funcionaria em longas metragens, se seguisse os cânones dos filmes pintados em acetato. Quando o filme foi lançado, já parecia um clássico. Há um misto de antigo e futurista no design, que dá a impressão de que o filme é um peça arqueológica encontrada no futuro, e que nunca vai envelhecer.
- A adaptação do livro de Stefan Wul desce redonda. A história não tem uma cena a mais ou a menos. Está contada exatamente com todos os elementos que precisa. Algumas cenas aparentemente fora da linha narrativa, como as que mostram as inquietantes criaturas monstruosas se entredevorando, ajudam a pontuar a passagem do tempo, enquanto reforçam a atmosfera surreal de Ygam, o planeta dos Draags.
- É merito do livro, mas Lalox soube manter no filme: Uma interessantíssima reflexão sobre a condição humana, sua natureza, comportamento, organização social e política.
- O final seco, sem nenhuma conclusão moral. Como se dissesse: - O que importa deste filme são os fatos que foram narrados. A consequência do desenrolar dos fatos não é importante, mas sim como os personagens agiram no momento em que tiveram sua oportunidade de participar da história. As pessoas são suas atitudes e não suas conquistas.


4- Allegro Non Troppo, 1976, produzido e dirigido por Bruno Bozzetto 

É o quarto longa metragem de Bozzetto. As obras anteriores ainda eram fortemente marcadas pela influência do estilo UPA, que dominou a animação a partir de meados dos anos 50. Mas este filme, que mescla animação e live action, e é uma paródia à Fantasia, de Disney, tem um estilo gráfico próprio, síntese original da moderníssima ilustração internacional dos anos 60-70. 
As sequências live action, em preto e branco, são uma crítica mordaz aos bastidores da indústria de animação. Contrapõe os artistas, pobres e explorados, contra o empresário e o maestro-estrela, narcisistas e exploradores. Tudo com um humor pastelão, conduzido principalmente pelas atuações de Néstor Garay, como o tirano maestro sádico, e Maurizio Nichetti, como o poeta animador clown.
Em 2013 Bozzeto lançou um curta, Rapsodeus, que segue a mesma linha do longa de 37 anos antes. O curta é tão genial como o longa e poderia ser incluído como sua parte. É quase um discurso-testamento de Bozzetto, que resume o que observou do mundo e qual o sentido que encontrou na vida.


Algumas das razões pelas quais coloco este filme na minha lista:

- Ainda que siga a estrutura de Fantasia, é um filme totalmente original e inovador. Cada uma das sequências trata de forma inteligente e crítica assuntos políticos, sociais e ecológicos. Resgata o que existe de melhor no cartum: a crítica independente, sem filiação ideológica, que atira para todos os lados em que existam hipocrisia e abuso.
- O estilo visual, sintético e único.
- Animação rica, precisa, flúida, mas sem maneirismos. 
- A sátira live action do que se passa no mundo real de uma produção de cinema, ainda que seja exagerada e caricata, ainda é, até hoje, o retrato documental mais fiel do que é verdadeiramente a indústria do entretenimento.
- O filme é cheio de achados. Destacam-se pra mim a emocionante visão da memória afetiva de um gato, com a Valsa Triste, de Sibelius, e a versão da evolução da vida, com o Bolero, de Ravel. Esta última apresenta um mundo em que a vida se origina de um resto de refrigerante, no fundo de uma garrafa de Coca-Cola, largada por um astronauta que parte: Simplesmente genial.
- O melhor fim de um filme de toda a história do cinema: Bergman, você perdeu! 


5- American Pop, 1981, produzido e dirigido por Ralph Bakshi
 
É o sexto longa metragem de Bakshi. Ralph já tinha anos de experiência com séries de TV, quando estreou seu primeiro longa, Fritz the Cat, baseado nos quadrinhos homônimos do autor underground Robert Crumb. Indo completamente na contra-mão dos filmes familiares que, cada um a seu modo, todos os outros produtores americanos faziam, Bakshi estreou seguindo na linha da sátira pesada da sociedade americana: Sexo, drogas, protesto contra o establishment. Esse primeiro filme decola super bem e Bakshi produziu mais dois, já com seus próprios personagens e experiências pessoais: Heavy Traffic e Coonskin. Considerado pela crítica de então, o Coppola da animação, Ralph amarga com Coonskin, ataques de todos os lados. Era o filme mais polêmico de todos e incomodou todo mundo. Para os dois filmes seguintes, ele muda a estratégia: Wizards e O Senhor dos Anéis - Filmes de fantasia, em que a crítica social está presente, mas maquiada com mundos imaginários e seres fantásticos. 
Em O Senhor dos Anéis, Bakshi aprimora a utilização de rotoscopia como técnica matriz das animações. E utiliza essa técnica magistralmente em American Pop, ao mesmo tempo em que volta à carga, contando a história dos Estados Unidos no século XX, através da evolução da música pop. Roteiro de Ronni Kern.

Algumas das razões pelas quais coloco este filme na minha lista:

- Muitos animadores torcem o nariz para a técnica de rotoscopia. Mas neste filme o trabalho dos artistas, reinterpretando graficamente e modulando o timing, demonstra que quando o animador é realmente bom, ele pode ser bastante criativo, também com esse estilo. Não é a técnica, é o uso que se faz dela.
- A direção, enquadramentos, planos e cortes funcionam extremamente bem. No quesito ritmo cinematográfico, Bakshi manja dos paranauê.
- Os contrapontos entre as músicas e o que se passa nas telas é muito bem sacado. Ao contrário da enorme maioria das animações com música pop, que são meras descrições visuais que acompanham a letra. Há o tempo todo uma suspensão, um vazio entre o desejo poético expresso na canção e a dureza dos fatos da vida dos personagens. O filme expressa com precisão a permanente ansiedade em que vivem as pessoas.
- A sequência do cortejo fúnebre da cantora Frankie, diante de um Tony demolido, ao som de Summertime, de Gershwin, na voz de Janis Joplin é matadora. A melhor síntese dos anos do sonho 60-70 que o cinema jamais produziu.
- Toda a forma como o roteiro desvenda a construção dos antecedentes que vão gerar Pete, o último artista da família. Como tudo que ele é, é a consequência do que foi vivido por seus antepassados: gênio.


6- Alice, 1988, dirigido e escrito por Jan Švankmajer

Após 20 curta metragens, produzidos ao longo de quase 30 anos, este é o primeiro longa de Švankmajer. O nome original tcheco, "Něco z Alenky", quer dizer "Algo de Alice" e a história é uma adaptação do livro de Carroll, "Alice no País das Maravilhas". Mas das inúmeras adaptações que esta narrativa encontrou nas telas, apesar do tom inquietante, mesmo sombrio, talvez esta versão seja a que segue mais literalmente a ação do texto original. Švankmajer queria que o filme se parecesse com um sonho e certamente logrou seu objetivo.
Alice é interpretada pela menina Kristýna Kohoutová. Se você já leu o livro original, deve ter percebido que Alice não é nenhuma Poliana saltitante. É uma menina inquieta, em conflito interior, perdida em um mundo instável e pertubador. E assim também é a Alice deste filme.

Algumas das razões pelas quais coloco este filme na minha lista:

- Apesar da sensação de incômodo e ausência de lógica narrativa, o filme consegue sustentar a atenção de quem o assiste. Há sempre algo a descobrir, uma surpresa a cada cena. Naturalmente, o espectador que está completamente condicionado pelo modelo de cinema puramente comercial, provavelmente não se interessará por esta obra. Mas qualquer pessoa, com alguma sensibilidade artística, não deixará de se sentir permanentemente provocada.
-  A animação stop-motion é assumida completamente, pelo que é. Ao contrário dos maneiristas filmes recentes da Laika, que utilizam inúmeros recursos digitais para limpar a animação e as imagens de qualquer imperfeição. E a leve estroboscopia, típica desta técnica, favorece ainda mais a sensação de sonho. 
- As marionetes animadas contracenam sempre em seu tamanho real. Não há uma maquete de cenário, para criar a ilusão de outra realidade. O irreal, o onírico, foi conseguido através da manipulação de objetos e bonecos em seus próprios tamanhos.
- Já perdi a conta de quantas adaptações do livro de Carroll assisti. Guardo de algumas, cenas memoráveis. Como a versão produzida por Brian Henson (2001): - Gene Wilder, no papel de Tartaruga Falsa, cantando junto com o Grifo, um muppet da Henson's Creature Shop. Ou algumas cenas do longa da Disney (1951), como as aparições do gato de Cheshire ou o chá com a Lebre e o Chapeleiro. Mas este filme de Švankmajer é o mais íntegro e fiel ao clima de sonho e nonsense do conto original. Ao se recusar a fazer concessões para tornar o filme mais comercial, o autor acabou por conseguir a melhor costura narrativa de todas as versões. 
- Ao contrário da versão desastrada de Tim Burton (2010), em que a personagem de Alice foi distorcida, para se tornar no final uma bem sucedida mulher de negócios (!!!), neste filme Alice é ela mesma, fonte do próprio sonho inquieto em que vive. Todas as interpretações são benvindas. É uma obra aberta, assim como também o é o livro que a inspirou.


7- Cemitério dos Vagalumes (Hotaru no Haka), 1988, filme do estúdio Ghibli, dirigido por Isao Takahata e adaptado de um conto de Akiyuki Nosaka

Isao já tinha atrás de si uma extensa carreira, no cinema e na TV, quando dirigiu este filme, seu primeiro para o estúdio Ghibli. Graduado em literatura francesa em 1959, e vivendo de animação, desde que começou no estúdio Toei, naquele mesmo ano. 
Dirigiu seu primeiro longa, - Hórus, Príncipe do Sol -, em 1968, vinte anos portanto, antes de Cemitério dos Vagalumes.
O conto de Akiyuki, semi auto-biográfico, é a trágica história de duas crianças, irmãs, que tentam sobreviver, orfãs, em meio aos escombros de um Japão assolado pela segunda guerra mundial. É uma realidade crua e triste, e este provavelmente é o filme mais duro já produzido em animação.
Takahata praticamente não desenha mais e, motivado por sua formação em literatura, é um diretor focado especialmente na narrativa dramática e construção dos personagens.


Algumas das razões pelas quais coloco este filme na minha lista:

- Nunca imaginei que eu pudesse ser tão emocionalmente impactado por um filme de animação. O filme me engoliu do começo ao fim e as lágrimas caíram sem parar.
- Uma história totalmente realista e que quebra completamente a convenção de que roteiros de animação são para tratar de fantasias ou representações metafóricas. Um roteiro que não se parece nada adequado para animação, mas que por isso mesmo tornou esse filme uma experiência totalmente singular.
- A direção de Takahata é simplesmente brilhante. As cenas acontecem de forma simples e quase discreta, mas a cada evento somos surpreendidos e nos perguntamos se realmente estamos vendo o que estamos vendo.
- A relação amorosa dos dois irmãos, cercada de indiferença e frieza, formou um nó dentro do meu peito, que cresceu até a garganta. Tanto amor, no meio de um deserto. Impressionante.


8- Princesa Mononoke (Mononoke-Hime), 1997, filme do estúdio Ghibli, escrito e dirigido por Hayao Miyazaki

Metade dos filmes que escolhi foram produzidos pela Ghibli. Em um deles, -A Tartaruga Vermelha- , a participação foi parcial. Mas mesmo assim, é inegável a marca que esse estúdio imprime na animação dos últimos 30 anos. É a grande referência. E não dá para falar de Ghibli, sem falar de Miyazaki. Todos os filmes dele são excepcionais, até mesmo aqueles em que ele participou de forma menos autoral. 
Mononoke é o sétimo longa dirigido por ele, que então também já acumulava vasta experiência com séries de tv, tendo iniciado sua carreira em 1963, como intervalador nos estúdios Toei. É portanto já um artista bastante maduro. E bem sucedido. Quando realizou esta obra, já era aclamado em todos os lugares do mundo, e suas obras, esperadas com ansiedade. 
O filme bateu recordes de bilheteria no Japão e foi muito bem na Europa e outros países. Nos EUA, onde Hayao ainda não era totalmente conhecido, teve uma presença fraca na telona, mas foi bastante bem na venda de DVDs. Marcou finalmente sua entrada nos Estados Unidos, esse que é o maior mercado do globo, mas também o mais fechado a produções estrangeiras.

Algumas das razões pelas quais coloco este filme na minha lista:

- O roteiro é bastante complexo, mas mesmo assim a narrativa é bastante clara. Os personagens são todos muito interessantes, psicologicamente ricos. Afora o protagonista, Ashitaka, todos os outros poderiam ser vilões. Mas fica claro que existe uma justificativa para todos e que o drama está muito além das construções maniqueístas pobres da maioria dos longas de animação. Até mesmo Mononoke, que dá título ao filme, é um personagem ambíguo e raivoso. 
- Ashitaka é realmente um herói muito legal. Heróico, mas humilde, compassivo. Se não fosse a doença que o impeliu a deixar sua pequena vila, passaria o resto da vida, muito bem, protegendo os camponêses. Não tem delírios de grandeza. Grande é sua alma.
- Uma das sequências mais lindas (e copiadas) do cinema de animação: O surgimento e morte do Espírito da Floresta. Acompanhamos com total atenção o misterioso surgimento desse Ser incomparável, misto de beleza e horror. Nos surpreendemos com sua decapitação e passamos a torcer, confusos, por algum milagre. E então entendemos que o milagre já estava acontecendo. Não a toa a sequência inspirou tantas outras, mais ou menos semelhantes, em outros longas. Como as cenas de conclusão de A Canção do Oceano (Tomm Moore, 2014) ou Moana (Disney, 2016).
- Os filmes de Miyazaki sempre são uma reorganização dos mesmos ítens: Elementos e personagens que voam, gigantes que tombam, protagonistas estigmatizados, criancinhas e pequenos seres mimosos e inquietos, estruturas sociais e deveres que engolem todos os personagens... Confirma-se a afirmação de Federico Fellini, de que os diretores sempre refilmam o mesmo filme. O sucesso portanto não está nos ingredientes, mas na forma como você cozinha com eles. Neste filme Miyazaki conseguiu o ponto ideal de tudo aquilo que vinha experimentando em todos os seus filmes anteriores. Inclusive projetos abortados, como a adaptação de Rowlf, de Richard Corben, que tem muitos elementos coincidentes com os de Mononoke.
- Uma história de fundo ambiental, com mensagem ecológica, que não é chata, óbvia. Miyazaki não é simplista, como a maioria dos filmes que querem ser politicamente corretos, com suas mensagens simplórias que culpam o capitalismo ou a indústria. Ele coloca uma série de valores humanos em curso de colisão e, é otimista, ao apontar a salvação através do amor e da ética individual, e não na vitória maniqueísta de um "supra-bem" irreal.


9- A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi/ Spirited Away), 2001, filme do estúdio Ghibli, escrito e dirigido por Hayao Miyazaki

Este filme, até agora, é o único longa metragem de animação não-americano que conseguiu vencer o hermético sistema de votação da Academia de Hollywood, sendo premiado com o Oscar de Melhor Longa de Animação de 2002. Miyazaki e Kurosawa são os dois únicos diretores japoneses que receberam o Oscar Honorário, pelo conjunto da obra. Isso não quer dizer que Miyazaki seja o melhor de todos os cineastas de animação fora dos EUA. Dar importância demais ao Oscar é desconhecer os mecanismos de marketing do cinema americano, e ser um tanto provinciano. Por outro lado, o crítico americano Roger Ebert, não poupa elogios a Miyazaki, que, sim, o considera o maior cineasta de animação de todos os tempos. Pessoalmente, acho esse tipo de comentário de Ebert MUITO relativo. 
Chihiro foi o primeiro longa metragem da Ghibli a utilizar animação CG em algumas das cenas.
Hayao desenvolveu este filme pensando especificamente em algo dirigido a meninas de 10 anos de idade. O resultado é um trabalho típico do gênero "enredo de amadurecimento": O rito de passagem da infância para a maturidade. Não por acaso o nome original, Kamikakushi, quer dizer "escondido pelos deuses". Refere-se a um termo folclórico japonês que trata daquilo que desaparece, morre, para ressurgir transformado, de novo, para a sociedade.


Algumas das razões pelas quais coloco este filme na minha lista:

- Um dos elementos recorrentes dos filmes de Miyazaki são cenas em que os personagens parecem não estar fazendo nada. Como se estivessem simplesmente deixando o tempo passar. Óbviamente que isso não é por acaso. Deliberadamente o diretor utiliza esse "nada" para construir a credibilidade interior dos personagens. Provê-los de "espírito". Paradoxalmente, ao diminuir sua ação, em um filme de animação, dota-os de uma "anima", uma alma. O diretor já falou sobre isso algumas vezes. Chama isso de "vazio" (em japonês, "ma"). Não é um vazio qualquer. É uma pausa de reflexão interior. O momento em que os personagens de seus filmes deixam o tempo passar, enquanto refletem sobre sua própria condição. Em Viagem de Chihiro há uma belíssima sequência, que é um exemplo bem evidente disso: A menina Sen (Chihiro), acompanhada de Sem-Rosto e Bo, e ocasionais fantasmas, sentam-se no trem, que cruza o mar, silenciosamente, por um longo tempo. Um dos momentos mais marcantes do filme. E, curiosamente, nada acontece.
- Assim como em Mononoke, é um filme com uma mensagem ecológica profunda e que não tem nada a ver com os clichês habituais. Trata da questão da Memória e Paisagem, ou, como eu prefiro chamar, da Biofilia: A identidade de Chihiro é resgatada pela memória afetiva que tem de um riacho em que brincava quando era uma criança pequena. O riacho é o lugar onde ela guarda viva a sua integração com a própria vida.
- Inúmeras sequências criativamente marcantes e soberbamente animadas. A luta com Sem-Rosto na casa de banhos é uma delas. A transformação dos pais em porcos e a chegada dos espectros, outra.
- Atmosfera. A direção de arte é sublime. A escolha do menú de cores, os elementos arquitetônicos, cada personagem, cada objeto de cena, a iluminação de cada sequência. É um dos filmes mais cuidadosamente elaborados para criar uma atmosfera realisticamente irreal da história do cinema, animado ou live action.



10- O Conto da Princesa Kaguya (Kaguya-Hime no Monogatari), 2013, filme do estúdio Ghibli, dirigido por Isao Takahata 

Takahata não dirigia nenhum longa desde 1999, quando lançou - Meus Vizinhos, os Yamada - além de participar em alguns projetos especiais. O Conto da Princesa Kaguya demorou quase oito anos para ficar pronto, para inquietação dos investidores. E o diretor tinha 78 anos quando o terminou.
A história é baseada em um antigo conto folclórico japonês, do século X, O Conto do Cortador de Bambú. O roteiro foi desenvolvido pelo próprio diretor, em parceria com a escritora Riko Sakaguchi. Com 137 minutos de duração, pode ser considerado mais longo do que o tempo médio dos longas metragens de animação, que geralmente tem entre 90 e 105 minutos.
É certamente o filme mais ambicioso e apurado da carreira de Takahata, que quis deixar este filme não só como um marco artístico, mas um legado espiritual.


Algumas das razões pelas quais coloco este filme na minha lista:

- É o longa de animação mais bem acabado e desenhado que já assisti. Não há nenhuma cena neste filme que não seja esmeradamente produzida.
- Ao contrário da maioria dos animes, tem um estilo gráfico muito mais refinado e suave, que faz jus à milenar tradição gráfica japonesa. Leve, claro, inteiramente traçado com textura de crayon e pincel, cenários em aquarelas translúcidas e suaves. Uma das críticas que os animes costumam receber, fora do seu nicho de fã-clube, é pela pobreza do estilo gráfico, herdada dos mangas produzidos em grande volume e muito rapidamente. Uma pergunta que se costuma fazer é, -Por que a animação japonesa não continuou evoluindo naquela linha elegante e criativa de filmes como "Príncipe Suzano e o Dragão de Oito Cabeças" (1963), e enveredou para o desenho esquemático e repetitivo? Seja qual for a resposta, este filme de Takahata é um marco na retomada artística visual do anime. Uma belezura.
- São tantas sequências tecnicamente sublimes, que fica até difícil destacar alguma. O último reencontro com Sutemaru, talvez seja o que mais me marcou. Seja pela animação, pela sensação de profundidade de campo, pelo próprio roteiro, pelas emoções, ou mesmo por toda a direção: cada corte e plano sequência se desenrolam e encadeiam com perfeição de timing e edição. De tirar o fôlego.
- O que Takahata e Sakaguchi conseguiram enxergar no conto folclórico original, para desenvolver nas telas, é transcendental. É um filme sobre o intangível e o efêmero. É um filme sobre a bolha de sabão mágica que é a infância, substituída rapidamente pela impossibilidade da felicidade na terra. É um filme sobre o insaciável desejo de posse e a impermanência da vida. Sobre o inefável, manifesto em inconcebível beleza feminina, que não é outra coisa se não a rara pureza da alma.


11- A Tartaruga Vermelha, 2016, dirigido e co-escrito por Michaël Dudok de Wit

É o primeiro longa metragem de Dudok, que já contava 63 anos de idade quando do seu lançamento. O diretor anima comerciais, ilustra livros infantis e leciona animação. Antes desse filme, já tinha alguns curtas realizados, entre eles Father & Daughter (2000), premiado com o Oscar de melhor curta-metragem de animação.

O roteiro do longa foi co-escrito com a diretora e roteirista Pascale Ferran. A produção, de Toshio Susuki, reúne algumas empresas da Europa: Arte France, Belvision, CN4, Prima Linea e Why Not, com a Ghibli, do Japão. Entre diversos prêmios, foi laureado com o "Un Certain Regard", no Festival de Cannes.
A ideia de incentivar o trabalho de Dudok na produção de um novo curta, que finalmente virou um longa, partiu do estúdio Ghibli. A elaboração da obra foi acompanhada de perto por Isao Takahata, ainda que sempre deixando Michaël totalmente livre para trabalhar. 
A concepção final do filme utilizou muitas referências realistas filmadas e fotografadas, mas sem rotoscopia. As referências eram observadas e estudadas, mas não utilizadas como base dos desenhos. O release de divulgação da obra chamou essa forma de trabalhar de animationalytique. Alguns elementos complexos, como a jangada e a tartaturga, foram animados por CG3D.

Algumas das razões pelas quais coloco este filme na minha lista:

- Como em todos filmes desse artista, o espaço vazio (ou negativo) é frequentemente explorado, não só como um elemento estético, mas principalmente narrativo. Da mesma forma, o cenário também é um personagem. O resultado é uma permanente sensação de imensidão, de integração do humano como parte da natureza, e de dimensão espiritual.
- Nenhuma fala, nenhum diálogo. O vazio do espaço se associa ao silêncio de vozes e, ao longo dos 80 minutos de exibição, forma-se dentro do espectador um sentimento de meditação profunda. Este filme é uma missa, um rito sagrado, uma procissão de luz, uma experiência mística.
- É a utilização mais efetiva do estilo ligne claire que jamais ví em uma animação. Quando assisti "Vidas ao Vento", de Miyazaki, pela mesma Ghibli, pensei, especialmente nos planos gerais da sequência do terremoto: - É a ligne claire belga do Tintin, pena que Spielberg optou por aquele hiperrealismo borrachento quando resolveu produzir seu Tintin. Devia ter feito isto aqui. E Dudot escolheu ir por esse caminho, ao invés do estilo com pinceladas largas, que caracterizou todos seus outros filmes. Pelo que entendi de sua apresentação no Anima Mundi, a decisão de animar nesse estilo gráfico foi a melhor forma que encontrou para produzir em escala de longa e manter a leveza de estilo. Seja como for, achei muito bonito.
- Eu sempre espero pelo dia seguinte para saber se gostei mesmo de um filme, ou não. É o dia seguinte que diz pra mim o que eu realmente senti, e o que ficou para mim depois da experiência do filme. Já descobri que gostei de filmes que achei que não tinha gostado. Já me dei conta de que alguns filmes que gostei, não eram grande coisa. Com A Tartaruga Vermelha, fiquei em silêncio mental por quase três dias depois que o assisti. Acho que nada antes me impactou tanto: pela história e pela experiência estética e cinematográfica.
- A integração da animação CG3D com animação hand-drawn é suave e precisa. É preciso conhecer muito bem a técnica de animação para perceber que são estilos tão diferentes, lado a lado.
-  Momentos inesquecíveis. A passagem súbita dos anos. A presença da natureza, reividicando fortemente sua soberania. Os sonhos e lembranças que se confundem com a própria vida.
- A fluizes das animações dos personagens quando estão nas águas. Sente-se a força do empuxo.
- Os contrastes de grandes massas de cores: O imenso mar verde, o infinito céu azul, as extensas praias brancas e as grandes pedras claras, as enormes massas de verde da vegetação.



Bom, é isso. A lista acabou. Seguem alguns comentários adicionais sobre...

Longas em CG3D: É, não entrou nenhum. Você pode pensar que é porque não gosto de CG. Mas não é isso. Aliás, os três últimos filmes da lista tem algumas sequências produzidas em CG3D. O que eu não gosto é de animação que quer "parecer que é de verdade". Não gosto do hiperrealismo, como meta para CG3D. Não só por causa do efeito "uncanny valley". Mas principalmente porque simplesmente não me empolgo com tentativas de reproduzir o real. Eu gosto de arte quando é uma estilização, uma re-interpretação. Algo que se expressa e materializa muito mais como emoção, do que como técnica realista. 
Outra coisa é que todos os filmes CG3D são formulaicos demais. Clichês demais. Frenéticos demais. E tem diálogos demais. Os personagens não param de falar. Mas isso é muito mais uma coincidência do sistema pesadamente comercial em que são produzidos, do que algo inerente ao CG. Ou seja, ainda pode ser que apareça um filme 100% nessa técnica que ganhe meu coração e minha mente.
Mas mesmo assim, eu considerei alguns longas de animação em CG3D que gostei. Não são muitos. Quase Ratatouille entrou na lista. Mas no final, como eu queria ficar em no máximo dez (e olhe que virou onze), a lista ficou sem nenhum.

Longas brasileiros: Não fiz essa lista pensando em países ou nacionalidades. É uma lista do que mais gosto, do que mais me impactou, do que acho que mais contribuiu para a animação como arte, e não uma lição de nacionalismo. Incluiria um filme feito no Brasil, se o filme fosse tão bom quanto os outros, mas não só porque é brasileiro. Minha opinião sobre essa coisa de patriotismo é a mesma de Samuel Johnson: "- O patriotismo é o último refúgio dos canalhas."
Sorry, extremistas. Pardon, populistas.
Amar a terra-mãe é muito diferente de brigar por bandeiras.
Céu, SP Agosto 2017

O Anjo da História diz:

OUT OF MODEL: got to get you into my life

ou: Out of Renaissance via Refusés Model - A homenagem mais homenageada da história da arte? - A referência mais referida da histór...

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